quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Verdade da inocência

Tenho saudades de quando era inocente e a minha cara o revelava em cada gesto. Lembro-me bem de os adultos falarem de coisas à minha frente a pensar que eu era inocente e que eu não as entenderia. E eu debaixo da mesa a ouvir aquilo tudo e a questionar-me se eles estariam bem da cabeça. Eu debaixo da mesa a compreender tudo o que diziam enquanto brincava com os legos, e a perceber que suposta mente não deveria estar a entender nada, como se estivesse a ver um filme que não era para a minha idade. Mas estava, embora muitas das vezes com alguma interferência ou com pouca rede, como regularmente acontece em algumas partes da auto-estrada.
O nosso sistema jurídico defende que, até provas em contrário, somos todos inocentes, mas a sociedade fora dos tribunais, a da rua e dos jornais, advoga para si que, até provas em contrário, somos todos culpados. E porquê? Porque a inocência não vende. Mas a culpa sim.
E sabem que mais? Somos todos culpados por isto e devíamos ir todos presos para aprendermos. Mas não vamos, porque nos declaramos inocentes, como se fôssemos pequeninos e não entendêssemos nada do que dizem à nossa volta. Mas entendemos sim e é fácil perceber que a capa de um jornal que declara em letras garrafais que um homem ou uma mulher igual a nós é “culpado” é muito mais con clusiva do que a mesma capa, com o mesmo homem ou a mesma mulher igual a nós, com as letras grandes a dizer “inocente”. A culpa não deixa
dúvidas, mas a inocência levanta-as. A culpa é irredutível, a inocência é um processo que nunca está acabado. A capa de um jornal com alguém a declarar-se inocente será sempre olhada com desconfiança como quem diz “deve ser inocente, deve!”, enquanto esse mesmo alguém declarado culpado não suscita a mínima incerteza. Sendo culpado, acabou-se.
Sendo inocente, isso é o que se vai ver ainda. Porque a inocência é difícil de provar — tem de haver provas cabais disso, temos de jurar a pés juntos e com as mãos sem fazer figas, prometer por tudo o que é mais sagrado, como quando fazíamos quando éramos mais pequenos e nos questionavam se estaríamos a falar verdade: “Juras pela tua mãe que não contas a ninguém?” E nós jurávamos. “Juras por tudo o que é mais sagrado?” E nós jurávamos para saber o segredo que depois contaríamos a outros fazendo-os jurar do mesmo modo. A culpa não é, no entanto, assim. Se uma vez é culpado, é para sempre culpado. Mesmo
que tenha sido sempre inocente.

Texto transcrito do jornal "O metro", escrito por Fernando Alvin

Com muita razão de ser, muita logica fazendo todo o sentido!


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